
Existe uma geração que aprendeu a escrever com lápis, papel e dicionário aberto sobre a mesa. Para encontrar uma palavra, era preciso folhear, errar a ordem alfabética e voltar algumas páginas. Muitas vezes, esse processo levava a termos que nem estavam sendo buscados. Com isso, o vocabulário se formava lentamente, entre leitura, tentativa e curiosidade.
Hoje, essa mesma geração escreve diante de um campo de texto em que qualquer frase pode ser “melhorada” por uma IA em segundos. Nesse contexto, o encontro não é apenas tecnológico. Ele representa um choque de referências sobre o que significa saber escrever, argumentar e escolher palavras.
Quem cresceu com o dicionário internalizou a ideia de que escrever bem resulta de esforço acumulado. Por outro lado, a IA entrega, em um clique, um tipo de texto que antes parecia privilégio de quem estudou muito.
Por que isso é importante
Para quem atravessou escola, vestibular, faculdade e mercado de trabalho sem IA, a escrita virou parte da identidade. O jeito de enviar um e-mail, montar um relatório, propor uma ideia ou responder uma mensagem carrega anos de prática. Por isso, quando uma ferramenta sugere reescrever tudo com outro ritmo e outro vocabulário, o impacto vai além da forma. Ele atinge a percepção de autoria.
Além disso, essa geração ocupa posições de liderança, gestão ou referência técnica em muitos espaços. São pessoas que assinam pareceres, dão feedbacks, orientam equipes e avaliam trabalhos. Consequentemente, quando passam a depender excessivamente da IA para revisar ou formular ideias, o efeito se espalha. A linguagem adotada por uma pessoa começa a influenciar departamentos inteiros.
O que está em jogo
O primeiro ponto envolve a percepção de competência. Quem aprendeu a escrever na prática pode sentir que está ficando para trás ao ver colegas usando IA para produzir em minutos o que antes exigia horas. Diante disso, surgem dois extremos: aderir sem critério ou rejeitar por completo. Em ambos os casos, algo se perde.
Por um lado, existe o risco de terceirizar decisões que exigem julgamento humano. Por outro, há o desperdício de uma ferramenta que pode liberar tempo mental para tarefas mais relevantes. Nesse equilíbrio, a experiência acumulada tende a ficar subutilizada.
Também ocorre uma mudança na forma como a trajetória profissional se traduz em linguagem. Pessoas que viveram contextos distintos e dominaram jargões específicos carregam um repertório rico. No entanto, quando a IA entra como filtro final, ela costuma suavizar termos e apagar marcas dessa trajetória. Assim, experiências diversas acabam convertidas em textos neutros, alinhados a um padrão genérico de boa redação.
Por fim, surge a questão da confiança. Leitores, alunos, equipes e parceiros confiam em quem demonstra posicionamento, estilo e clareza. Quando isso se perde, fica mais difícil reconhecer quem está falando de fato. Nesse cenário, a voz da IA pode ocupar o espaço da voz de quem viveu a experiência.
Como entender esse desafio
Para a chamada geração do dicionário, a IA pode representar um segundo estágio de alfabetização. O primeiro foi aprender a construir frases com regras e prática. Agora, o segundo envolve negociar com uma ferramenta que oferece atalhos, mas não conhece a biografia de quem escreve.
Dessa forma, a postura precisa mudar. Em vez de competir com a máquina ou tentar provar superioridade, essa geração pode usar aquilo que a IA não tem: contexto, prioridade, nuance e responsabilidade sobre o que é dito.
Na prática, isso significa usar a IA como rascunho, não como versão final. Ela pode ajudar a organizar ideias, sugerir estruturas e reduzir redundâncias. Ainda assim, o texto precisa passar por uma revisão consciente, que recoloque termos, referências e escolhas de linguagem alinhadas à história de quem escreve e ao público que vai ler.
Além disso, vale tornar esse processo visível. Em equipes, salas de aula e espaços de decisão, falar abertamente sobre o uso de IA ajuda a deslocar o foco da ferramenta para o critério. No fim, o valor continua na leitura crítica, no ajuste fino e na responsabilidade sobre o que se assina.
O que você precisa saber
A geração do dicionário aprendeu a escrever em um contexto de leitura lenta, consulta constante e prática contínua.
A IA altera a percepção de competência ao oferecer textos prontos em situações que antes exigiam esforço individual.
O uso sem critério pode apagar marcas de trajetória e transformar experiências diversas em linguagem genérica.
O papel dessa geração pode ser o de mediar, interpretar e ajustar o que a IA produz.
A diferença não está em usar ou não IA, mas em continuar responsável pelas escolhas de linguagem no texto final.



